24.3.06

Distração

Hoje saí para comprar matéria-prima para meu trabalho. Uma chapa de borracha de EVA. Já tinha ido até lá muitas vezes, na Avenida Rangel Pestana. Como em São Paulo tudo demora, levei o tocador de CD com uma seleção musical que só quem me conhece é capaz de entender: Astor Piazolla com Libertango, Carlos Gardel com Scent of Woman e Zeca Baleiro cantando Isso Aqui ta Bom Demais do Dominguinhos.

Ouvi o Cd no ônibus repetindo as músicas várias vezes e me deixando levar pela mistura de sons, e imagens que se formavam na minha mente distraída, que quase esqueci de descer no ponto do Metrô Parque Dom Pedro.

Já na calçada, liguei o piloto automático e comecei a andar no ritmo do Perfume de Mulher. Pena que esqueci de ajustar a rota. Andei por uns quinze minutos na Avenida Alcântara Machado, sem perceber que ela não tinha as mesmas lojas que eu conhecia há uns cinco anos. Foi preciso alcançar o Viaduto Alcântara Machado pra eu perceber que estava no lugar errado! Um pouco confusa comecei a pensar numa maneira de chegar a Rangel Pestana sem ter que voltar o caminho todo. Não tive dúvidas e entrei à esquerda numa ruazinha que tinha toda cara que ia me levar exatamente pra fora da rota, só que empolgada com os tangos e impetuosa como nunca enfrentei a sensatez e encarei a viela. Piazolla e Gardel se revezavam na imposição do ritmo dos meus pés. Era tão intenso e vibrante que eu quase corria, percorrendo uma distância grande, de um lugar cada vez menos familiar.

A certa altura resolvi acender um cigarro, mas o vento não colaborava e tive que parar. Eu devia estar com cara de tango, ou sei lá o que, e quando dei por mim tinha um homem, aparentemente uns cinqüenta anos vindo direto na minha direção. Ele falou comigo qualquer coisa que não ouvi, com os fones quase no último volume, mas acho até que percebi do que se tratava.

Estava me perguntando quanto era? É isso? Deseducadamente, como também não tinha ouvido sua pergunta eu continuei meu caminho. Numa fração de segundo eu revisei toda minha roupa pra ver se estava dando essa pinta: Minha mini saia nem era tão mini assim, a blusa azul clarinha não tinha atrativos, quem sabe as unhas compridas e pintadas de vinho. Sei lá. Alguns metros depois tudo foi esclarecido, eu tinha parado para acender o cigarro bem na porta da zona!

Continuei minha caminhada, rumo ao lugar errado, agora com mais elementos pra brincar no meu cérebro e me distrair do meu objetivo que era comprar EVA. Sol muito forte. Passos rápidos. Música alta. O cigarro. O puteiro. Minha cabeça assumiu a brincadeira de ir por sua conta e passei a imaginar a cena: No palco o tango. Ele de chapéu cobrindo o rosto, ela lindíssima, de vestido vermelho. Rostos fechados, só o peito pulsando demonstrava a grande paixão daqueles corpos. A conquista, o desejo, o amor. Pernas e braços impetuosos e cínicos se enlaçando ora como gatos macios e sensuais, depois como cobras prontas pra traição.

Nesse clima saí finalmente das vielas e me deparei com a rua da Mooca. (Bem fora do objetivo que era a Rangel Pestana). Minha única chance era seguir até o final, alcançar a Avenida do Estado, chegar novamente ao Metrô e começar do ponto inicial, cuidando pra entrar na rua certa, desta vez. A essa altura já estava no segundo cigarro, as pernas já meio bambas pela caminhada forçada e o sol ainda mais forte. Distraí-me do tango e começou a tocar o chote de Dominguinhos. Imagina eu andando, rindo do meu péssimo senso de direção e cantando no meio da avenida: Olha que isso aqui ta muito bom, isso aqui ta bom demais. Olha quem ta fora quer entrar, mas quem ta dentro não sai!

De novo os neurônios tomaram conta da situação, mas dessa vez de um jeito engraçadíssimo. Eram a linda mulher de vermelho e o amante latino dançando uma deliciosa quadrilha de São João e minha imaginação dava o tom da insanidade pro novo jogo de conquista e desilusão do casal de amantes.

Pra resumir. Achei a avenida, achei a loja, comprei o EVA, passei num bar pra comprar outro maço de cigarros, andei mais uns 15 minutos até o ponto de ônibus e voltei pra casa com uma cena novinha, brincante no meu cérebro. Até poderia virar cena de verdade e ir pro palco, por que não? Será que algum louco seria capaz de criar essa baderna toda, ou isso é delírio meu sob efeitos da nicotina e do Sol?

Maluquice?!

Pois é! Olha que isso aqui ta muito bom.
Isso aqui ta bom demais.
Olha! Quem ta fora quer entrar.
Mas quem ta dentro não sai.

4 comentários:

Anônimo disse...

Bela história, vou roubar parte para escrever um texto hoje na madrugada. Mas terá assinatura para você. Será um "roubo programado", só não sei se consentido.
Nada como viajar com a música para se redescobrir a vida. Mas tenha cuidados redobrados com as esquinas e as travessias... Numas se abrem mistérios e impropérios (como o "seu" preço), noutras há o risco de um carro louco freiando a palmos ou milímetros de você. Cuide-se. Sempre.
Ronaldo Faria

Alissandra Rocha disse...

hahahahahaha!!! Do Tango ao Xote!!! que maravilha!!!! cara, eu sei que os ensaios as vezes perdem os rumos, como vc na busca da avenida. Mas a Delícia estar em achar o caminho, vasculhando vielas e ruas escusas ( não escuras ).
Na distração da sua mente e entre um cigarro e outro, o mundo enlouquece!

Anônimo disse...

Postei no meu blog e te devolvo. Obrigado

Cena roubada
24/03/2006

“No palco, o tango. Ele de chapéu cobrindo o rosto, ela lindíssima,de vestido vermelho. Rostos fechados, só o peito pulsando demonstrava a grande paixão daqueles corpos.
A conquista, o desejo, o amor.
Pernas e braços impetuosos e cínicos se enlaçando hora como gatos macios e sensuais, depois como cobras prontas pra traição.”
(Márcia Nestardo)

Na sutil e sombria trama da coxia, um misto de enlace e orgia. Desbragados beijos, tresloucados seios a se entregar às bocas vis. Um bandoneon a tocar cercado de passos largos, olhos a passear pelos múltiplos orgasmos sem fim. No meio de tudo, torpe e trôpego, o amor. Um gesto prestes a virar sonho e tesão, sanha e ilusão. Insano, o casal rodopia pelo fictício salão.
- Quanto tempo faz que eu sigo pela estrada sem curvas e retas, apenas uma linha apagada e etérea onde o tempo se desfaz? Quanto tempo ainda terei de juntar cacos e pedaços para um corpo que, mesmo vivo, somente jaz?
Uma luz azul e fria acende no fundo do palco. O cenário (que traz ao fundo um grande canário) sobe e desce feito um dançarino a dar o seu último salto. O ato é um prólogo encoberto em suspiros pela protofonia de antecede a orgia. Os corpos, banidos de si, num cadafalso letal, enroscam pêlos e pele, suores e lágrimas. As vidas são duas dádivas. Homem e mulher em sedução.
- Haverá véus onde possa cobrir meu rosto frio e finito em desgosto? Se não me der, terei conseguido entregar a mais púbere vagina, pulsando como fosse simples dor de angina, ou viajarei esquecida à louca e pouca vida?
Da platéia, as pessoas gritam como em alcatéia. Há quase nada do todo e um outro tanto do pouco. Um espectador vocifera sentimentos e lamentos impróprios. Alguns fumam suas saudades em cachimbos de ópio. No meio do palco, o sexo sobressai ao ócio. E os dois se atiram ao chão e completam a cena numa elucubração que vai mais além do que a cogitação de ser ou não ser... Não há, nesta hora, verbo haver.
Agora, com todos urrando, de pé, enlouquecidos de prazer, a cortina se fecha. O amor vira pecha de uma peça qualquer. Mas, por detrás dos bastidores, num único e sórdido camarim, os dois ainda se amam sobre um sofá cor de carmim. Soturna, a orquestra toca um tango urbano e a voz do cantor embriagado mistura Buenos Aires com fado. Lá fora, a rua, nua, fria, molhada de chuva, perpetua-se à pele dos dois e sua, escorrendo suor e solidão. Para uns, simples devassidão. Para eles, apenas uma louca, desbragada e inconseqüente paixão.

Ao som da Orquestra Típica de Fernandez Fierro, em Destrucción Masiva.

Tatiana disse...

to adorando essas tuas estripulias criativas!!
ri com este texto...